Eu devia ter uns dez anos de idade quando descobri, na casa da minha tia Marina, uma velha coleção da revista Seleções do Reader’s Digest que cobria o período entre 1942 e 1951. Foi muito marcante, pois essa época é muito especial na minha mitologia pessoal – não só era possível ver a história da II Guerra Mundial ser escrita enquanto os campos de batalha ainda estavam fumegantes como também apreciar os avanços da eletrônica nos tempos em que a televisão ainda era tecnologia de vanguarda. Hoje, vejo que, na época, a coleção não era tão velha assim, já que seus últimos exemplares ainda nem tinham vinte anos de vida – mas, para mim, pareciam coisas de um mundo muito, muito distante – e glamouroso.
Era curioso que, naquela época, a propaganda dessa revista era concentrada numa única seção, não se misturando com a matéria redacional. Nos anos de guerra, eram muito poucos os anúncios de bens de consumo, exceto os produzidos no Brasil. Coisa compreensível, dadas as pesadas restrições que a guerra impôs ao comércio exterior. Quando muito, anúncios de automóveis com promessas para um pós-guerra ainda incerto. Por outro lado, havia inúmeros anúncios das indústrias bélicas e de base – bombardeiros, caças, estaleiros, siderúrgicas, locomotivas, material ferroviário, radares, válvulas eletrônicas, artefatos de borracha… à primeira vista, um desastre em termos de media targetting – afinal, qual leitor brasileiro iria decidir a compra (de resto, inviável…) de uma superfortaleza voadora B29 ou de reluzentes vagões Budd de aço inoxidável? Mas, certamente, esses anunciantes prestavam um apoio vital para a ofensiva psicológica que foi o lançamento da versão brasileira do Reader’s Digest numa época incerta da II Guerra.
Um dos anunciantes mais frequentes naqueles tempos de guerra era a Bethlehem Steel, um colosso siderúrgico que teve papel vital para a glória dos EUA nas duas guerras mundiais, principalmente através do fornecimento de aço e da construção de belonaves para a marinha americana. Seus anúncios frequentemente citavam a usina de Sparrows Point que, entre outras tantas coisas, estava localizada à beira-mar e podia exportar seus produtos diretamente aos seus clientes – aliás, certamente alguns deles brasileiros – sem depender do transporte terrestre e da manipulação adicional da carga, o que poderia danificá-la e atrasar seu despacho.
Essa imagem de pujança e poderio ficou bem marcada em minha cabeça de criança – afinal, era o Reader’s Digest cumprindo sua missão de influenciar corações e mentes… Portanto, foi com grande surpresa que constatei, ao iniciar minha carreira profissional, que a siderurgia americana passava por uma forte crise no início dos anos 1980. Que, na verdade, se tornou crônica ao longo dos anos. Pior: apesar de todo seu poderio, a Bethlehem Steel faliu em 2001 e, em 2003, foi adquirida, junto a outras siderúrgicas americanas quebradas, por um grupo estrangeiro. Os novos donos não se interessaram pela usina de Sparrows Point, a qual mudou várias vezes de dono – incluindo um grupo russo, o que deve ter feito McCarthy revirar-se em seu túmulo! – enquanto era desmantelada aos poucos. Atualmente, vem sendo desenvolvido um plano de remediação ambiental no local da antiga usina para dar outro destino ao seu terreno.
A derrocada de um setor que parecia ser tão vital para a vida americana foi surpreendente. Mas parece não faltar explicações para o fato: os altos custos da mão de obra sindicalizada, incluindo salários, pensões e assistência médica, herança de uma era de vacas gordas; a rápida expansão siderúrgica em escala global após a II Guerra Mundial, usando tecnologias mais avançadas, como o eficientíssimo conversor LD (Conversor ou Processo Linz-Donawitz) a oxigênio ao invés dos lerdos fornos Siemens-Martin; a industrialização mundial, antes um virtual monopólio americano e europeu; o arrocho nos preços do aço para ajudar o esforço americano na guerra do Vietnã; a perda da importância estratégica do aço, na medida em que a aviação e a eletrônica revolucionaram a arte da guerra; a competição com materiais alternativos, particularmente na indústria automotiva; a preferência dos investidores pela economia digital, com taxas de retorno muito maiores e seguras num setor (aparentemente) limpo da economia…
Os tempos mudam e, no capitalismo, glórias passadas ou gigantismo não são garantia de sobrevivência – só a lucratividade é essencial. A sobrevida de setores ineficientes através de intervenções voluntaristas somente proporciona alívio momentâneo, com consequências ainda piores a médio e longo prazo. A profunda e prolongada crise industrial brasileira parece fazer com que o espectro de Sparrows Point evoque o famoso efeito Orloff daquela propaganda de vodka: “Eu sou você amanhã”… Da mesma forma como ocorreu com a siderurgia americana, os fundamentos que impulsionaram a industrialização brasileira já não existem mais. Teremos condições de abandoná-los e criar novas condições para vencer num mundo cada vez mais esforçado, capacitado e competitivo? Ou, como já alertou Levi-Strauss, passaremos diretamente da barbárie à decadência sem conhecer a civilização?