Neste capítulo estudaremos a última das causas das distorções dimensionais, diretamente relacionada com a Transformação Metalúrgica que ocorre durante a têmpera do aço. No capítulo I, introdutório a este texto, vimos um exemplo comum que ocorre corriqueiramente nas nossas residências, que é o congelamento da água.
O “menisco” ilustrado na Fig. 1 representa um aumento de volume, decorrente da transformação “água líquida para água sólida”, e é causado pelo natural aumento de volume que acompanha a transformação. Interessante observar que a água constitui uma exceção na natureza, pois de modo geral, as substâncias puras reduzem o volume durante a solidificação.
Como já foi dito no Cap. I, com os aços ocorre o mesmo fenômeno, não na solidificação, mas durante a transformação de fase que acompanha o processo de têmpera. Assim, quando se deseja temperar um aço, de modo a, por exemplo, obter-se um incremento nas propriedades físicas como Limite de Resistência, obrigatoriamente haverá uma transformação de fase, e, consequentemente, uma distorção dimensional associada.
Transformação de Fase na Têmpera do Aço
Podemos descrever o processo de têmpera de um aço em termos das fases final e inicial, ou seja, uma microestrutura baseada na composição {ferrita+cementita} no início, e {martensita} no final, mas na realidade, há uma série de fases intermediárias, e em cada uma delas, há uma alteração volumétrica associada.
Essas alterações volumétricas são originadas por diferentes arranjos atômicos, características de cada tipo de fase, com propriedades físico-químico-mecânicas diferentes e ocupando volumes diferentes.
A Tabela 1 mostra a Variação Volumétrica em função do teor de C, para cada transformação de fase que pode estar presente na têmpera do aço.
Interessante notar que apenas a primeira transformação leva a uma contração volumétrica. De fato, a Austenita ocupa um volume menor que todas as demais fases.
Outro ponto importante é que as equações são válidas quando não existem outras microestruturas ou precipitados, particularmente os carbonetos. São calculadas para estruturas “puras”, ou seja, citando a transformação martensítica, a transformação leva a 100% de martensita.
A transformação Austenita => Bainita é a que se deseja, por exemplo, quando se executa o processo de Austêmpera, na qual se obtém um limite de elasticidade elevado (“efeito mola”). Molas automotivas e eixos que ficam submetidos a elevados ciclos que podem levar à fadiga são aplicações típicas deste tratamento.
Entretanto, nosso foco é a transformação martensítica, objeto da têmpera dos aços. Simulando uma condição de um aço com 0,5%C, podemos estimar a variação volumétrica total, partindo de uma microestrutura perlítica (típica) até a martensita final como segue.
O gráfico da Fig. 2 ilustra o efeito de forma prática. Exemplificando:
– Barra cilíndrica ø50 x 100 mm;
– Aço 1045;
– Temperado em água a partir de 850ºC.
Pressupostos:
1. A transformação é total atingindo 100% da massa;
2. A troca térmica se processa pela superfície cilíndrica não havendo troca nos “topos”, ou seja, somente o comprimento será afetado;
3. Não se considera efeito de massa, nem tampouco de forma.
Calculando a variação do comprimento L:
Del V/V = (V final – V inicial)/ V inicial = 4,3%
V inicial = (II x 50²/4) x 100 = 1.96 x 105 mm³
V final = (II x 502/4) x L = 1963,5 x L
[(1963,5 x L) – (1.96 x 105)]/ 1.96 x 105 = 4,3/100
L= 104,1 mm
Ou seja, o comprimento vai aumentar 4,1 mm.
Nota-se que o exemplo pressupõe que, não havendo trocas térmicas nos “topos” da peça, não há variação no diâmetro. Na prática, em função de efeito de massa (diferenças de temperatura entre núcleo e superfície) e forma (resistência a variações nas bordas), a forma final da peça cilíndrica assume o formato de uma “barrica”, havendo, de fato, uma diminuição do comprimento e correspondente aumento no diâmetro médio (Fig. 3).
Na Fig. 3, temos a imagem de corpo de prova para monitoramento de temperatura, utilizados em tratamentos térmicos em fornos a vácuo.
O corpo de prova da esquerda ainda não foi utilizado, enquanto o da direita já passou por diversos ciclos de têmpera. Ambos eram originalmente idênticos, pois foram tirados da mesma barra.
A Fig. 4, já utilizada no Capítulo III, mostra claramente os pontos em que ocorre a transformação de fases e sua correspondente variação.
No Detalhe A temos a transformação Perlita => Austenita, com a correspondente contração e no detalhe B a transformação Martensítica com a correspondente expansão.
Evidentemente, a expansão causada pelas transformações de fase leva ao surgimento de campos de tensões, os quais, por sua vez, se manifestam na forma de distorção dimensional.
O Efeito da Taxa de Resfriamento
A Fig. 5 ilustra o efeito da taxa de resfriamento, em ensaio com dilatômetro, sobre o resultado final da distorção dimensional. A Tabela 3 detalha a sequência de eventos.
A taxa de resfriamento define para um dado aço com um dado teor de C e uma dada temperabilidade, a fração volumétrica de martensita formada. Assim, quanto maior a taxa de resfriamento, maior a fração de martensita, e, portanto maior a intensidade de tensões formadas e, consequentemente, maior a distorção dimensional.
Dessa forma, para um mesmo aço, redução na taxa de resfriamento implica menores distorções dimensionais, até o limite em que esta mesma redução implica redução nas propriedades mecânicas desejadas.
O Efeito de Massa e a Diferença entre Núcleo e Superfície
Na prática industrial, as diferenças de massas entre as diversas partes de um dado componente são de vital importância no que se refere às distorções dimensionais de têmpera, uma vez que elas definem a velocidade com que o componente resfria.
A Fig. 6 ilustra a secção transversal de uma “sapata” fabricada em aço SAE 1037 e temperada em água. A redução de massa introduzida na geometria leva a uma distorção dimensional em sua extremidade da ordem de 0,25 mm, causando sérios transtornos na montagem do componente. Uma revisão do projeto removendo a redução de massa torna mais uniforme o resfriamento, reduzindo a distorção resultante para valores inferiores à 0.08 mm [1].
Assim, como o efeito de massa, as diferenças entre núcleo e superfície impõem distintas taxas de resfriamento ao aço, retardando ou adiantando a formação de martensita. Essa heterogeneidade no resfriamento leva ao surgimento de tensões elevadas, resultando distorções dimensionais.
Efeito dos Microconstituintes – Misturas de Fases
Diferentes taxas de resfriamento num mesmo componente levam a misturas de fases, uma vez que, para um dado tipo de aço com uma dada espessura meios normais de resfriamento utilizados industrialmente não conseguem levar a formação de 100% de martensita.
A Fig. 7 ilustra esquematicamente as curvas TTT (a) sobrepostas a curvas de resfriamento contínuo de um aço DIN 22CrMo44, em três situações distintas de diâmetro (100, 30 e 10 mm) com o mesmo processo de resfriamento. As curvas (b) à direita representam a distribuição de tensões após resfriamento, mostrando as diferenças entre superfície e núcleo.
O corpo de prova de 100 mm, a dada taxa de resfriamento, apresenta uma microestrutura constituída de mistura de perlita, bainita e carbonetos dispersos, após o resfriamento. Não há praticamente formação de martensita, exceto numa fina camada na superfície, possivelmente. Nessas condições, o perfil de tensões é dado pela curva superior direita, mostrando forte tensão compressiva na superfície e tensões trativas no núcleo.
Já no corpo de prova de 30 mm, ocorre uma transição com as tensões manifestando-se como compressivas no núcleo, passando por trativas numa faixa a aproximadamente meio-raio e retornando ao estado compressivo na superfície. Nessa situação, ocorre transformação martensítica em maior grau, chegando ao núcleo, em função da temperabilidade relativamente alta deste tipo de aço.
O corpo de provas de 10 mm é o mais crítico em termos de distorção dimensional proporcional, uma vez que sua massa é insuficiente para resistir às tensões originadas na transformação. Igualmente terá a maior proporção de martensita em sua microestrutura (praticamente 100%, pois não atravessa as curvas de transformação difusional conforme pode ser visto na curva TTT). Interessante notar, neste caso, o surgimento de tensões trativas na superfície da peça, o que usualmente é indesejável, pois pode levar ao surgimento de trincas.
A presença de microestruturas mistas, ao menos do ponto de vista de distorções dimensionais, não é necessariamente um mal, pois ao reduzir as tensões originadas da transformação martensítica, substituindo-as por valores menores ou aliviando-as numa microestrutura menos rígida (bainita, por exemplo) há uma redução na distorção líquida resultante. Claro que a presença de microconstituintes diferentes, numa mesma região da peça, leva a variações nas propriedades físico-químico-mecânicas, havendo necessidade de criteriosa avaliação pelo projetista antes da aceitação desta condição.
Conclusão
Como já foi dito nos capítulos anteriores, não há, do ponto de vista industrial, meios de isolar cada uma das causas de distorções dimensionais.
Em particular no caso das distorções dimensionais inevitáveis, considerando o fator térmico e o fator metalúrgico, ambas sempre comparecem sobrepostas, não sendo possível isolar uma única causa.
Entretanto, um processo de tratamento térmico que seja considerado desde o início do projeto, com os controles e adequações à geometria e propriedades desejadas pelo projetista, sempre leva a uma redução considerável das distorções dimensionais líquidas, fazendo a diferença entre um projeto viável ou não.
A Fig. 8 encerra este texto e tenta resumir de modo compreensível e didático os diferentes componentes das Distorções Dimensionais e, para cada um deles, os pontos de atenção que o projetista deverá ter.
Entenda-se o quadro como um Resumo, que, se não esgota o assunto, pode servir como um orientador para o alinhamento do projeto, de um lado as propriedades e características desejadas para o produto e, de outro, para uma melhor compreensão e redução, na medida do possível, das Distorções Dimensionais causadas pelo tratamento térmico de têmpera.