Nitretação sob plasma – Fundamentos e aplicações – Parte I

Os processos industriais modernos têm exigido propriedades superiores de superfícies metálicas no que se refere à resistência ao desgaste e resistência à corrosão. Esta necessidade vem sendo elevada em função da introdução de novos materiais e de novos desafios tecnológicos. Por exemplo, na injeção de novos polímeros de engenharia ou nos desafios esperados para exploração de óleo e gás ao nível do pré-sal. Em vista disto, a Engenharia de Superfície vem se tornando uma ferramenta eficaz para elevar o desempenho de componentes solucionando problemas de desgaste e corrosão em condições que seriam impossíveis para materiais convencionais ou em situações nas quais a relação entre custo-benefício é vantajosa [1,2]. Não menos importante, um novo cenário ambiental tem se delineado ao longo dos últimos anos e tem influenciado os processos industriais, privilegiando processos ambientalmente favoráveis em detrimento dos tradicionais. No caso particular da nitretação, os processos por atmosfera gasosa de amônia craqueada e em banhos de sais a base de cianetos estão perdendo rapidamente espaço para tecnologias ambientalmente favoráveis como a Nitretação sob Plasma.

Fica evidente que a adequação do processo de Nitretação sob Plasma aos materiais tradicionais, bem como novos desenvolvimentos em ligas não nitretáveis convencionalmente, é de extrema importância do ponto de vista tecnológico para as indústrias de manufatura e do ponto de vista acadêmico/industrial no desenvolvimento de novas camadas. Neste primeiro artigo da série serão apresentados os aspectos fundamentais da Nitretação sob Plasma e sua aplicação nos aços tradicionais. Artigos futuros apresentarão novos desenvolvimentos em aços e ligas especiais.

Tratamento Superficial de Nitretação

Historicamente, o desenvolvimento do processo de endurecimento superficial pela introdução de nitrogênio é creditado a Adolph Machlet, que depositou a primeira patente referente em 1908, reconhecida em 24 de junho de 1913 [3]. Em 1921, Adolph Fry depositou efetivamente a primeira patente de um processo de endurecimento superficial denominado de nitretação [3]. Em seus trabalhos [3,4], Fry descreve o processo de nitretação gasosa como um meio de endurecimento superficial em temperaturas próximas a 580°C, no campo monofásico da ferrita, gerando superfícies nitretadas com as características conhecidas até hoje.

O tratamento superficial de nitretação é definido como um tratamento termoquímico que envolve a introdução de nitrogênio na forma atômica por difusão no interior do reticulado cristalino de ligas ferrosas no campo de estabilidade da ferrita, em temperaturas normalmente na faixa de 500 a 590°C. Consequentemente, no processo de nitretação, não ocorre nenhuma transformação de fase, apenas a formação de nitretos ou carbonitretos. A microestrutura da superfície nitretada é normalmente formada por duas regiões distintas, a partir da superfície: (i) a camada de compostos, denominada também de camada branca, por seu aspecto ao microscópio óptico, mais externa, e (ii) a zona de difusão, logo abaixo daquela [5].

As principais melhorias de propriedades obtidas com o uso do tratamento termoquímico de nitretação e que se refletem em um aumento do desempenho de componentes, são:

• Elevada dureza superficial e resistência ao desgaste;• Alta resistência ao revenimento e elevada dureza a quente;• Melhoria na resistência à corrosão;• Elevação da resistência à fadiga.

O uso do diagrama de fases Ferro-Nitrogênio, apresentado na Fig. 1 [6], é indispensável para entendimento das transformações de fase que ocorrem na superfície das peças durante a nitretação, à medida que o teor de nitrogênio difundido no substrato aumenta. Nas temperaturas usuais de nitretação, a solubilidade máxima de nitrogênio na ferrita, do ferro puro, é da ordem de 0,1% em massa. Quando o teor de nitrogênio ultrapassa o limite de solubilidade ocorre a precipitação de compostos intermetálicos denominados nitretos. Conforme mostrado no diagrama de fases Fe-N, o primeiro nitreto a se formar é denominado de y’, de estequiometria Fe4N, com reticulado cristalino Cúbico de Face Centrada e com uma composição média de nitrogênio igual a 5,9% em massa. Caso o teor de nitrogênio exceda o valor de 6,1% em massa, ocorre a precipitação simultânea do nitreto E, de estequiometria Fe2-3N, com estrutura cristalina Hexagonal Compacta. Para teores de nitrogênio acima de cerca de 8%, o único nitreto presente será o tipo E. No ferro pode ocorrer a precipitação do nitreto metaestável alfa” [7].

A precipitação destes nitretos ocorre de duas formas: (i) na formação da Camada de Compostos, ou Camada Branca, que se situa na superfície mais externa do material. Neste caso, pode ocorrer a formação de uma Camada de Compostos que contenha apenas um tipo de nitreto, ou, como é mais usual, pode ocorrer a precipitação simultânea dos dois nitretos e (ii) na Zona de Difusão, onde estes nitretos se precipitam de forma fina e homogênea intragranular e, eventualmente, na forma de nitretos intergranulares. A formação das fases na nitretação depende também das condições de processo como o potencial de nitrogênio disponível no ambiente nitretante. Em trabalho clássico, Lehrer [8] mostra que é possível controlar a metalurgia da superfície nitretada utilizando como variável a pressão parcial de nitrogênio, ou o Potencial de Nitretação. Com a diminuição do potencial de nitretação o equilíbrio de fases pode ser deslocado de forma a suprimir a precipitação dos nitretos y’ e E, inibindo com isso a formação da Camada Branca.

A presença da Camada Branca é benéfica para uma elevação da resistência ao desgaste, considerando que a superfície é composta de uma fase cerâmica contínua e com dureza acima de 1.100 HV. Ainda, a Camada Branca eleva a resistência à corrosão do aço. Mankowski [9] mostra que em aços carbono, a camada de compostos apresenta uma resistência à corrosão significativamente superior a zona de difusão e que esta melhoria está relacionada com a presença de nitretos tipo E. A elevada resistência à corrosão deste nitreto está relacionada à sua capacidade de passivação.

Processo de Nitretação sob Plasma

Nos últimos anos, a Nitretação sob Plasma, tem se firmado como um processo de extremo impacto tecnológico por diversos fatores vantajosos de processo e para os materiais [10-12]. Dentre várias vantagens, as principais são: a possibilidade de controlar a microestrutura da superfície nitretada, elevada confiabilidade e reprodutibilidade e adequação às necessidades ambientais. Esse processo de nitretação foi desenvolvido por Berghaus [11] no início dos anos 30, não tendo sido continuado em função da dificuldade encontrada na época em controlar os principais parâmetros do processo. Com os avanços tecnológicos e com possibilidade de automatização dos processos, a partir da década de 80 a nitretação sob plasma assumiu destaque no ambiente industrial do primeiro mundo. No Brasil este processo foi introduzido a partir de 1995 [10].

Dentre as diversas vantagens oferecidas pela utilização do processo de Nitretação por Plasma, podem ser listadas as seguintes:

• Não causa dano ambiental;• Não utiliza componentes nocivos à saúde;• Fácil variação nos parâmetros do processo;• Boa reprodutibilidade;• Alta flexibilidade e fácil automação;• Eliminação da presença de poros na camada de compostos;• possibilidade de influenciar no tipo da camada composta (*’ ou *);• Possibilidade de nitretar aços com baixa resistência ao revenimento, utilizando temperaturas de processo próximas de 350°C;• Baixa variação dimensional;• Possibilidade de nitretação localizada.

O princípio do processo de Nitretação por Plasma consiste na produção do nitrogênio nascente, acelerando elétrons através de um campo elétrico em elevada energia cinética [13]. O processo [10,14,15] faz uso do gás ionizado de nitrogênio, hidrogênio, argônio e algumas vezes metano, que atuam como meio nitretante e agente adicional de aquecimento. O reator fornece energia ao sistema por uma fonte de tensão pulsada, com duração entre 50-200 µs e repetição do ciclo entre 50-2000 µs. O controle da pressão interna do reator é realizado por uma válvula conectada ao sistema de vácuo. O processo de nitretação inicia-se pela aplicação de uma diferença de potencial entre dois eletrodos. Os eletrodos são compostos pela parede do reator, que atua como anodo (+) e pelo substrato, peça a ser nitretada, que atua como catodo (-).

Quando uma diferença de potencial é aplicada entre o anodo e o catodo, dentro de uma mistura de gases numa pressão parcial conveniente, ocorre o processo de ionização que gera uma descarga brilhante (glow discharge) e que determina a ocorrência do plasma. A Fig. 2 apresenta de forma esquemática os fenômenos que ocorrem no processo de nitretação por plasma [10]

É importante notar que esta camada visível de gás ionizado, plasma, cobre cada parte da peça envolvendo-a como uma “luva”, atingindo da mesma forma superfícies planas, ranhuras estreitas e furos profundos, de uma forma homogênea, não conseguida nos processos convencionais. Esta homogeneidade garante a obtenção de uma zona nitretada com a mesma característica metalúrgica em qualquer parte da peça, independente de sua geometria. Por estas características, um grande número de peças, algumas, ou uma única peça/ferramenta, podem ser corretamente nitretadas para as necessidades esperadas de performance. A Fig. 3 mostra um fotografia da descarga incandescente em eixos durante a Nitretação sob Plasma.

Atualmente, os reatores industriais são completamente automatizados com relação aos principais parâmetros do processo como: condições de vácuo, pressão parcial dos gases, temperatura e tempo de trabalho, intensidade do plasma, taxa de aquecimento e resfriamento etc, garantindo as condições ideais para a geração e manutenção do plasma na superfície das peças. Ainda, os programas específicos gerados para diferentes tipos de componentes ficam armazenados no forno garantindo com isso a reprodutibilidade de tratamento superficial em diferentes lotes ao longo do tempo. A Fig. 4 mostra como os parâmetros de processo são controlados e armazenados em um reator industrial.

Existem diferentes tipos de reatores de nitretação por plasma. Uma diferença importante entre estes é a característica energética com relação à temperatura necessária para o aquecimento das peças. Dois são os tipos básicos de reatores: (i) reatores de parede fria, onde a energia térmica advém apenas da energia gerada pelo plasma e (ii) reatores de parede quente, onde a energia para o aquecimento é compartilhada entre a parede do reator, um forno tipo mufla, e a energia do plasma. O uso de reatores de parede quente tem como primeira vantagem a uniformidade de temperatura dentro da câmara [16]. Nestes reatores o perfil térmico é muito homogêneo, principalmente através da seção transversal. Nos reatores de parede fria o perfil térmico é altamente dependente da quantidade, tamanho e distribuição da carga, pois apenas nela é gerada temperatura. Por estas razões, os fornos de parede quente são especialmente aplicados para o tratamento de qualquer quantidade, peso e/ou geometria de peças.

Metalurgia de Superfícies Nitretadas sob Plasma

A versatilidade do processo de Nitretação por Plasma em permitir a obtenção de superfícies nitretadas com características metalúrgicas projetadas é talvez sua principal vantagem, principalmente quando comparada aos processos tradicionais. A otimização microestrutural da camada nitretada depende, fundamentalmente do controle de quatro variáveis do processo: temperatura, composição gasosa, pressão, tempo de nitretação, além da composição química do substrato [16]. A possibilidade de controle rígido da composição da mistura gasosa possibilita ao processo plasmas a partir de misturas controladas de nitrogênio, hidrogênio, argônio e metano. A Fig. 5 mostra as principais modificações da superfície nitretada por plasma a partir do controle destes elementos. Observa-se que uma elevação da quantidade de nitrogênio na mistura gasosa leva a formação da camada de compostos e controla qual o tipo de nitreto que a compõe. A adição de metano ao gás estabiliza o nitreto tipo E.

O controle preciso da concentração de nitrogênio na mistura gasosa possibilita, portanto, obter uma superfície nitretada sem a presença de camada de compostos ou controlar qual o nitreto a ser formado nesta camada, direcionando, assim, as propriedades da superfície para as diferentes solicitações. Deve-se observar, ainda, que o tempo de nitretação também influencia na formação ou não da camada de compostos. Há possibilidade de se suprimir a formação da camada branca o que é particularmente importante no que se refere a uma otimização no comportamento sob fadiga mecânica ou térmica.

De acordo com Sun e Bell [16], o potencial de nitrogênio limite para a formação da camada de compostos no aço para construção mecânica AISI 4140 depende não apenas da concentração de nitrogênio no gás, mas também do tempo de nitretação. De uma forma conjunta, a formação da camada de compostos é favorecida por elevados potenciais de nitrogênio e tempos crescentes de nitretação, conforme mostrado na Fig. 6.

Resultados de Aplicação

A seguir serão apresentados resultados para a aplicação dos aspectos fundamentais da Nitretação sob Plasma descritos anteriormente. Para isso, foi utilizado o aço para construção mecânica AISI/SAE 4140, amplamente utilizado na indústria de componentes estruturais para os setores automotivo, naval, aeronáutico, do petróleo e gás, entre outros. A possibilidade de combinar composição gasosa e temperatura de nitretação, em material previamente temperado e revenido sob vácuo para dureza de 35,6 HRC (354 HV), permite obter diferentes microestruturas para a superfície nitretada.

A Fig. 7 mostra as diferentes microestruturas obtidas com diferentes potenciais de nitrogênio. Após a nitretação sob plasma a 500ºC em mistura gasosa de 5%N2:95%H2 se obtém uma superfície nitretada composta predominantemente de Zona de Difusão e na nitretação 550°C em mistura gasosa de 75%N2:75%H2 a camada branca está presente de forma homogênea e sem a presença de nitretos em contornos de grão na Zona de Difusão. O potencial de endurecimento superficial após a nitretação atingiu cerca de 700 HV em profundidades próximas de 0,30 mm, como mostrado na Fig. 8.

A Fig. 9 mostra que o comportamento frente à corrosão depende da estrutura da camada nitretada. Quando a nitretação é conduzida com 5%N2, a Camada Branca insipiente não é capaz de interferir na resistência à corrosão apresentando uma resistência à corrosão comparável a do material sem nitretação. Entretanto, na presença da Camada Branca verifica-se uma elevação sensível da resistência à corrosão com o aparecimento da região de passivação para corrente da ordem de 10-5 A.

Referências

[1] ASM HANDBOOK – Surface Engineering, Ed. ASM International, v. 5, 1996.
[2] Holmberg, K. & Matthews, A. – Coatings Tribology: Properties, Techniques and Applications in Surface Engineering, Ed. Elsevier Science B.V., 1994.
[3] Mcquaid, H.W. & Ketcham, W.J. – “Some Practical Aspects of the Nitriding Process”, in Source Book on Nitriding, Ed. ASM International, p.: 1-25, 1977. Publicado originalmente em Transactions of ASST, v.14, 1928.
[4] Fry, A. – “The Nitriding Process”, in Source Book on Nitriding, Ed. ASM International, p.: 99-106, 1977. Publicado originalmente em ASST Nitriding Symposium, 1929.
[5] Thelning, K.E. – “Case Hardening”, in Steel and Its Heat Treatment, Ed. McGraw-Hill, 1975.
[6] Metals Handbook – Metallography, Structures and Phase Diagrams, Vol.8, 1973.
[7] Oliveira, S.D, Pinedo, C.E. & Tschiptschin, A.P. – “On The α” Nitride Transformation after Plasma Nitriding and Aging a Low Carbon Steel”, Journal of Materials Science Letters, v. 21, p.: 689– 691, 2002.
[8] Lehrer, E., Über das Eisen-Wasserstoff-Ammoniak-Gleichgewic, Z. Elektrochem, v.36, p.: 383-392, 1930.
[9] Mankowski, J. & Flis, J – “Effect of Plasma and Conventional Gas Nitriding on Anodic Behaviour of Iron and Low-Alloy Steel”, in 4th International Conference on Advances in Surface Engineering, Proc. Conf., Ed. Royal Chemical Society, Newcastle, England, 1996.
[10] Pinedo, C.E. – “Nitretação por Plasma”, Anais do I Seminário Internacional de Engenharia se Superfície, Ed. Núcleo de Pesquisas Tecnológicas da Universidade de Mogi das Cruzes, p.: 13-26, 1995.
[11] Edenhofer, B. – “Physical and Metallurgical Aspects of Ionitriding”, Heat Treatment of Metals, v.1, Parte 1, p.: 23-28, 1974.
[12] Edenhofer, B. – “Physical and Metallurgical Aspects of Ionitriding”, Heat Treatment of Metals, v.1, Parte 2, pp.: 59-67, 1974.
[13] Huchel, U. & Dressler, S. – “Pulsed Plasma Nitriding for the Automotive Industry Production Experience”, Proc. Conf., Heat Treatment Conference, Chicago/Illinois, April, Ed. ASM International, 1994.
[14] Verma, R. & Podob, M. – “Plasma Nitriding: State-of-the-Art”, Industrial Heating, September, pp.: 14-17, 1985.
[15] Jones, C.K., et al. – “Ion Nitriding”, in Heat Treatment’73, Proc. Conf., London, 12-13 December, Ed. The Metals Society, pp.: 71 – 77, 1973.
[16] Sun, T. & Bell, T. – “Plasma Surface Engineering of Low Alloy Steel”, Materials Science and Engineering, v. 140, pp.: 419-434, 1991.
[17] Pannoni, F.D. & Pinedo, C.E. – “Comportamento à Corrosão do Aço AISI 4140 Nitretado sob Plasma em Diferentes Misturas Gasosas”, Anais do 61º Congresso Anual da ABM, p.: 3580-3587, 2006.