É como se existisse um pacto social subjacente, por meio do qual a sociedade, em geral, aceitasse o risco de, eventualmente, absorver parte das perdas geradas por negócios sem sucesso, em troca das vantagens que, por outro lado, as atividades exitosas podem gerar. Esse pacto, entretanto, tem um limite
O empreendedorismo brasileiro, em termos jurídicos, é estruturado, majoritariamente, em sociedades com limitação de responsabilidade, isto é, em que a responsabilidade dos sócios está, de início, limitada a um investimento inicial ou superveniente que os sócios venham a fazer para a composição do capital social da sociedade.
É a limitação de responsabilidade que encoraja e motiva as pessoas a empreender. É por saber que os riscos da atividade estão limitados exatamente por aquilo que o empreendedor optou deliberadamente por investir que novos produtos, serviços e soluções são inseridos no mercado, dia após dia. É como se existisse um pacto social subjacente, por meio do qual a sociedade, em geral, aceitasse o risco de, eventualmente, absorver parte das perdas geradas por negócios sem sucesso, em troca das vantagens que, por outro lado, as atividades exitosas podem gerar.
Esse pacto, entretanto, tem um limite. Há casos em que o insucesso é motivado não por uma avaliação equivocada do empreendedor ou por escolhas erradas na condução dos negócios, mas pelo uso nocivo da sociedade e do expediente de limitação de responsabilidade. Para situações como essa, o direito anglo-saxão, a partir do final do século XIX, e com base no caso Salomon v. Salomon Co., desenvolveu a disregard doctrine, batizada por aqui como “teoria da desconsideração da personalidade jurídica”.
Resumidamente, esse instituto permite ao Poder Judiciário “desconsiderar” a tradicional distinção existente entre a pessoa da sociedade e do sócio, fazendo com que o efeito de certas obrigações assumidas pela empresa atinja diretamente o patrimônio dos sócios, tornando-os ilimitadamente responsáveis por tais obrigações. O instituto é regulado pelo art. 50 do Código Civil e pode ser acionado sempre que se verifique “desvio” na realização da finalidade da sociedade ou “confusão” entre os patrimônios da sociedade e de seus sócios.
A desconsideração da personalidade jurídica, no entanto, sempre foi bastante confusa em termos processuais. No regime do Código de Processo Civil antigo, a aplicação do instituto sempre se dava em fase de execução ou cumprimento de sentença e, no mais das vezes, a partir da simples informação por parte do credor de que a empresa demandada encontrava-se insolvente. Ou seja, os sócios eram incluídos no polo passivo de um processo executivo sem oitiva prévia e com base em elementos de prova bastante frágeis e incipientes. A reversão da situação, não raro, ficava relegada a um juízo de 2ª instância, sempre mais “indiferente” aos atos ocorridos perante a instância inicial e, lamentavelmente, com um grau de urgência nem sempre compatível com a gravidade da situação.
O novo Código de Processo Civil (CPC)altera decisivamente esse cenário. A lei atual prevê um incidente próprio para processamento de pedidos de desconsideração da personalidade jurídica. Nele, a parte interessada deve apresentar suas alegações e os elementos que demonstrem o “desvio de finalidade” ou a “confusão patrimonial”. A decisão, agora, não é mais tomada à revelia dos sócios interessados e o próprio processo executivo é suspenso durante o processamento do incidente. Os sócios, aliás, são citados para responder e apresentar provas da inocorrência dos fatos que permitiriam a desconsideração. Só após isso é possível ao juiz proferir uma decisão quanto ao pedido de desconsideração.
Os sócios, assim, ao menos sob o aspecto processual, estão mais protegidos, agora, em relação às dívidas da sociedade. O novo CPC, portanto, reforça e confere ao regime de limitação de responsabilidade a importância que ele realmente merece, condicionando a desconsideração da personalidade jurídica à efetiva comprovação dos requisitos legais exigidos para tanto.